Assim como existem pessoas chatas, há dias que também são. Hoje, especificamente, é um deles.
Não sei se é a desaceleração destes primeiros dias do ano, ainda impregnados com o cheiro de festas, ou se sou eu que acordei assim — chato.
Parece que vou enfrentar o desconhecido, o que, convenhamos, é um absurdo.
A funcionária da cozinha veio me avisar que para o almoço, aproveitará as sobras da feijoada de sábado.
Com uma boa pimenta malagueta e farinha de mandioca fina, tudo bem. Melhor ainda se houver algumas fatias de laranja.
Aprendi a comer comida adormecida nas pensões do Rio de Janeiro.
Na minha casa as sobras serviam para alimentar os porcos.
Esse choque cultural aconteceu em 1957, quando à noite, fui pegar água na geladeira da pensão onde havia acabado de me mudar.
Naquela época, fazia minhas refeições nos bandejões da faculdade e alugava uma vaga de quarto para morar.
Dividia o espaço com o meu irmão Pedro, no apartamento de um casal de judeus recém-chegados da Europa. Tinham sobrevivido à perseguição alemã na segunda Guerra Mundial, cujo tratado de paz foi assinado em 1945.
Passaram fome. Aprenderam a valorizar a comida a ponto de nunca desperdiçá-la, nem mesmo uma rodela de tomate.
Ao abrir a porta da geladeira e encontrar, sobre um pires, uma solitária folha de alface, um filme passou pela minha cabeça.
Lembrei da minha infância e adolescência. Da lata vazia de vinte quilos de banha de porco posta na porta da cozinha, em frente à área de serviço. E da cozinheira despejando ali as sobras do almoço e do jantar, que depois eram levadas para os chiqueiros.
Naquele momento, compreendi que o mundo tinha fome. E que desperdiçar comida era um privilégio indevido.
O fisioterapeuta deve estar chegando. Seus exercícios não fazem parte das coisas agradáveis — especialmente em uma segunda-feira.
Mas seguimos em frente. Amanhã será outro dia.
Gabriel Novis Neves é médico, ex-reitor da UFMT e ex-secretário de Estado